Um alicate para abrir o peito
Em homenagem às mulheres da oficina da Taís Bravo / Mulheres que Escrevem, agosto de 2020.
I. Desejo
há qualquer coisa luxuriosa na forma como você torce a mecha do seu cabelo com a mão direita,
como quando eu seguro a caneta desenhando as letras no papel pelas manhãs
ou acaricio o bico do meu próprio seio a noite.
ontem comprei um buquê exuberante de lírios na feira, dos quais me exibi com timidez pelas ruas até em casa,
igualzinho como quando te beijo em público.
parece um crime desejar-nos nesses tempos, mas parece que não é.
II. Raiva
sinto sua consistência viscosa correndo pelas minhas veias sem se misturar ao sangue,
óleo de pedra dividindo espaço com meu plasma, leucócitos, plaquetas.
eu sinto a substância se agitando nas passeatas e obstruindo meu sistema circulatório quando vejo o noticiário na TV.
não se retira com alicate, não se extrai porque
crianças morrem todos os dias.
mas hoje tudo o que posso fazer a respeito é
erguer metáforas sobre o que isso me causa.
a letra morta não deixa de conter a raiva.
III. sujeira
todas as mulheres são imundas aos olhos dos homens, como os bichos.
em três tardes/quasenoite eu imaginei uma revolução em que todas estearão a bandeira da imundície.
uma vida inteira sem nenhuma violência, nenhuma
sem ninguém mostrando o pau em ruas limpas,
sem ninguém se esfregando no ônibus sem consentimento exato,
sem ninguém humilhando ou ofendendo no escritório por apuro.
aos sábados arquitetamos nosso manifesto.
nossa bandeira, nosso peito, seios nus e ilesos.
o melhor e a dor do poema é esquecer o real e sonhar acordada.
